Depois de conspirações políticas para reduzir indenização às vítimas, empresa responsável pediu desculpas 50 anos depois da tragédia
Já se passaram 60 anos desde que o medicamento Talidomida foi retirado do mercado após mais de 10 mil notificações de problemas congênitos em filhos de mulheres que utilizavam o fármaco quando grávidas. Resultado de experimentos em campos de concentração nazistas, a droga foi liberada pela primeira vez na Alemanha, em 1957. Apenas em 2010, cientistas compreenderam o processo que causava malformações.
O medicamento foi aprovado em mais de 50 países e usado por grávidas para aliviar os enjoos matinais dos primeiros meses de gestação, período que coincide com a formação do bebê. Bastaram três anos para que os primeiros casos de malformações começassem a aparecer e serem notificados, embora muitos ainda tivessem dúvidas de que o fármaco era o responsável. Além das malformações, milhares de bebês nasceram mortos ou morreram no ventre das mães.
Milhares de adultos também tiveram danos irreparáveis nos nervos, desenvolvendo doenças ou ficando com sequelas.
Os casos foram descritos na Alemanha, Reino Unido e Austrália, mas o medicamento ainda levou um tempo até ser recolhido. O pior de tudo foi o julgamento. Como mostrou uma longa reportagem do The Guardian, feita após a descoberta de milhares de arquivos secretos sobre o caso, houve uma conspiração política e jurídica para reduzir a indenização às vítimas e ajudar a Chemie-Grünenthal a se livrar da responsabilidade pelos danos que causou.
Reuniões secretas com políticos, incluindo o ministro da justiça da Alemanha Ocidental, sem a participação das vítimas ou seus representantes, acertaram as indenizações que melhor servissem à empresa.
A Grünenthal era da família Wirtz, formada por filiados ao partido nazista, o que era comum na época. Eles se notabilizaram por terem um corpo técnico formado por médicos que atuaram nos campos de concentração de Hitler, incluindo o famoso Heinrich Mückter, criador da Talidomida.
Responsável por centenas de mortes nos campos de concentração, Mückter se livrou por pouco da prisão por crimes de guerra na Polônia. Foi o seu objetivo de criar uma vacina para o tifo o responsável por matar tantos prisioneiros.
“Negacionismo” salvador
Como o segundo medicamento mais vendido na Alemanha, junto com a Aspirina da Bayer, a Talidomida era propagandeada como “sem efeitos adversos” e receitada tranquilamente a mulheres grávidas e lactantes. Ninguém suspeitava que a droga poderia chegar ao feto. Mais do que isso, segundo mostra a reportagem do Guardian: “Na época, era uma afirmação absurda e tornou-se obscena a cada repetição”. Fake news ou um negacionismo, diriam hoje.
Há relatos de subornos para suprimir os primeiros relatórios sobre efeitos. Médicos alertavam e os donos da Grünenthal ignoravam e até zombavam das vítimas. Arquivos desenterrados pelo UK Thalidomide Trust trouxeram evidências de que Grünenthal continuou vendendo a Talidomida por mais tempo ainda quando se realizava o julgamento. A marca Contergan, que vendia o fármaco, foi retirada do mercado no final de 1961, mas documentos sugerem que Grünenthal sabia dos efeitos tóxicos pelo menos seis semanas antes da retirada colocando em perigo milhares de gestantes.
Enquanto países da Europa, especialmente a Alemanha, viviam uma verdadeira tragédia humana de malformações, os EUA foram poupados de tudo isso. O motivo foi a firme atuação de uma médica que trabalhava na Food and Drug Administration (FDA) chamada Frances Oldham Kelsey, que lutou desde o início, antes de qualquer relato, exigindo do fabricante testes mais robustos para autorizar o uso na população.
Sua atuação, que hoje talvez fosse chamada de “negacionista”, foi logo reconhecida por parte da imprensa e do governo dos Estados Unidos, tendo recebido a condecoração President’s Award for Distinguished Federal Civilian Service das mãos do presidente John F. Kennedy, em 1962.
Em 2010, cientistas japoneses finalmente compreenderam os processos que causavam mal formações. Dois anos depois, em 2012, a Grünenthal pediu desculpas às vítimas, 50 anos depois da maior tragédia farmacêutica da história.
No Brasil
Recentemente, foi noticiado que a Fundação Contergan, da Alemanha, quer suspender o pagamento de pensões às vítimas da síndrome da Talidomida no Brasil.
De acordo com reportagem divulgada nas emissoras alemãs, NDR e SWR, da revista Der Spiegel, a fundação Contergan, que foi criada para ajudar a indenizar as vítimas, alega que o calmante não era fabricado pela indústria farmacêutica Grünenthal, pois se tratava de um medicamento licenciado. Sob essa alegação, a entidade argumenta, em nota, que o produto é “fabricado e comercializado sob responsabilidade do proprietário do licenciamento.
No entanto, conforme mostrado na reportagem das emissoras, desde 1973, o Sedalis aparece listado como sendo de propriedade da Grünenthal. Além disso, a mesma farmacêutica aparece destacada na bula do medicamento como fabricante.
Em outubro de 2019, algumas vítimas receberam uma carta em alemão da fundação. No conteúdo, era anunciada a revogação do pagamento dos benefícios. Ao site Terra, Marcus Arruda, um dos beneficiários, afirma ter ficado chocado quando descobriu do que se tratava o documento: “Só de pensar nisso [no corte do auxílio] fico muito preocupado”. Atualmente, ele recebe € 2 mil (cerca de R$ 9 mil) por mês, dinheiro que usa, inclusive, para suas despesas médicas.
Criada no início da década de 1970, pelo Estado alemão, a Fundação Contergan, atualmente, sob o guarda-chuva do Ministério da Família na Alemanha, prometeu, na época, dar auxílio vitalício às vítimas da Talidomida. Segundo a Spiegel, 2.584 pessoas, sendo 300 estrangeiras, recebem uma pensão mensal que varia entre € 719 e € 8.117 (equivalente a um valor entre R$ 3 mil a R$ 36 mil). Os recursos vêm, principalmente, de impostos.
Fonte: Brasilsemmedo