Para a Polícia Federal, elaboração do documento foi parte de movimento golpista de oficiais para pressionar adesão de Forças Armadas ao golpe. O relatório da Polícia Federal (PF) de conclusão do inquérito sobre a tentativa de golpe de Estado aponta que militares discutiram pelo menos três versões da carta divulgada para pressionar o comando do Exército a aderir aos planos golpistas para manter Jair Bolsonaro no poder.
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A PF conseguiu extrair de celulares de militares investigados duas versões da carta que são diferentes daquela que se tornou pública no final de 2022.
Elas trazem fortes críticas ao Judiciário, acusado de atos ilegais, de abuso de poder e de censurar aliados do ex-presidente. E ao Legislativo, chamado de submisso e omisso diante de “arroubos autoritários” do STF.
Quadro de ruptura
Em uma das versões, os militares dizem que o país vivia um quadro de ruptura institucional e defendem a necessidade de se restabelecer o estado democrático de direito (leia mais abaixo).
As informações estão no relatório final do inquérito que investigou a suposta tentativa de golpe, e que foi concluído pela PF na semana passada. Na terça (26), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tirou o sigilo do documento.
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Reprodução
De acordo com a Polícia Federal, a redação da “Carta Aberta ao Povo Brasileiro de Oficiais Superiores do Exército Brasileiro” foi uma das duas ações planejadas por militares das forças especiais do Exército, conhecidos como “Kids Pretos”, para forçar a ruptura institucional no país e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.
A outra ação foi a operação para prender e eliminar Moraes, que chegou a ser colocada em prática em 15 de dezembro de 2022, mas foi abortada, segundo a PF, porque Bolsonaro não conseguir o apoio unânime da cúpula militar para o golpe.
Ainda de acordo com a investigação, essa operação também incluía o assassinato dos então presidente e vice eleitos, Lula e Geraldo Alckmin.
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Incômodo com o Alto Comando
A Polícia Federal destacou no relatório troca de mensagens entre militares investigados por envolvimento na trama golpista que mostram o descontentamento deles com a decisão do Alto Comando do Exército (ACE) de não se envolver na disputa política e eleitoral de 2022 em favor do governo Bolsonaro.
Esse descontentamento ficou evidenciado, por exemplo, em um diálogo entre o coronel Fabrício Moreira de Bastos e o também coronel Bernardo Romão Corrêa Netto, que aconteceu no dia 16 de outubro daquele ano, portanto antes do segundo turno das eleições presidenciais.
À época assistente do comandante militar do Sul, Corrêa Netto diz que “o ACE tem sido enfático nas afirmações de que devemos nos manter de fora das disputas políticas”. Bastos, em resposta, diz: “duvido que em 64 esses esquerdistas tinham tanta liberdade de manobra quanto tem agora”, se referindo ao ano do golpe militar de 1964.
Segundo a PF, após o resultado das eleições, com a derrota de Bolsonaro, as discussões entre esses militares investigados “se tornam mais extremadas”, inclusive com críticas aos comandantes que demonstravam rejeição aos planos golpistas.
Em 23 de novembro, quando o ministro Alexandre de Moraes nega um recurso do PL, partido de Bolsonaro, contra o resultado das eleições, o coronel Correa Netto diz ao coronel Bastos que “Thomaz, Richard e Stumpf tinham que ser exonerados, presos, sei lá, qualquer m*”.
Ele estava se referindo aos generais Richard Nunes, Valério Stumpf e Tomás Paiva, que lideravam os Comandos Militares do Nordeste, do Sul e do Sudeste, respectivamente.
Reunião para discutir a carta
Diante da falta de ação dos comandantes, a PF diz que um grupo de militares da ativa decide “agir para provocar uma ruptura institucional”. E que eles participaram de uma reunião no dia 28 de novembro de 2022 para “planejar e executar as ações voltadas a pressionar os Comandantes do Exército a aderirem ao Golpe de Estado para manter o então presidente da República Jair Bolsonaro no poder, além de ações para atingir o ministro Alexandre de Moraes”.
O relatório da PF apresenta um outro diálogo, do dia 26 de novembro, em que os coronéis Corrêa Netto e Bastos tratam da iniciativa de reunir militares com formação em Forças Especiais, identificados como FE, para discutir ações a serem tomadas para colocar o plano em prática.
Corrêa Netto diz a Bastos: “(…) resolvi tomar uma iniciativa e conto com o apoio do NILTON para isso. Reunir alguns FE em funções chaves para termos uma conversa sobre como podemos influenciar nossos chefes. Para isso vamos fazer uma reunião em BSB (…)”
Segundo a PF, a reunião do dia 28 aconteceu no salão de festas do prédio onde morava o coronel Márcio Nunes de Resende, na Asa Norte, em Brasília.
E os responsáveis por organizá-la e convidar os participantes foram Corrêa Netto e o então coronel e hoje general Nilton Diniz Rodrigues, que na época era assistente do comandante do Exército, general Freire Gomes.
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De acordo com a PF, as provas revelam que o objetivo do grupo era reunir apenas militares das Forças Especiais que atuavam como assistentes de generais da ativa e que pudessem agir para convencer seus respectivos comandantes a aderirem aos planos golpistas.
Entre os convidados estava o coronel Cleverson Ney Magalhães, considerado pelo grupo “o mais importante” participante da reunião.
De acordo com a PF, a importância se devia ao fato de Magalhães ser, à época, assistente do general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, então comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter), “unidade militar que tem sob sua administração o maior contingente de tropas do Exército”.
12 de dezembro
O relatório informa que no mês seguinte, em 12 de dezembro de 2022, Oliveira viria a se reunir com Bolsonaro no Palácio da Alvorada, quando confirmaria ao então presidente o apoio aos planos de golpe.
A PF diz que nessa reunião do dia 28 de novembro de 2022 os militares golpistas chegaram à versão final da carta que foi, então, encaminhada ao comandante do Exército, general Freire Gomes.
O texto, assinado por alguns oficiais e já de conhecimento público, é datada de 28 de novembro, mesmo dia da reunião.
O documento diz que os oficiais que a assinam estavam “atentos a tudo que está acontecendo e que vem provocando insegurança jurídica e instabilidade política e social no país” e que estavam “disposto a enfrentar as adversidades atualmente presentes em nosso país”.
Em outro trecho, a carta diz que “covardia e injustiça são as qualificações mais abominadas por soldados de verdade” e que os militares estavam dispostos a “lutar sem temor pela Pátria amada”.
De acordo com a PF, a carta “representa uma clara ameaça de atuação armada, deixando evidente que a execução dos atos para suprimir o Estado Democrático de Direito estava em andamento.”
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Primeiras versões são mais radicais
O relatório da PF apresenta outras duas versões da carta, chamadas de “A” e “B”. O texto, principalmente na versão “A”, é bem diferente da versão final, com críticas mais contundentes ao Legislativo e ao Judiciário e apoio às teses de fraude eleitoral encampadas pelo ex-presidente Bolsonaro e aliados.
“Temos assistido, nos últimos anos, um gradual processo de degradação política, institucional, social, jurídica, constitucional, ética e moral do país, que culminaram recentemente com a desconfiança de milhões de brasileiros com (o) pleito eleitoral de 2022. Filigranas jurídicas levaram à soltura, à “descondenação” e à reabilitação dos direitos políticos e eleitorais, após a condenação em todas as instâncias da Justiça brasileira, dos culpados envolvidos no maior esquema de corrupção da nossa história, e em crimes correlatos, aumentando o desgaste da imagem e a descredibilização da mais alta corte judicial do país”, diz um trecho da carta “A”, se referindo à anulação da condenação do presidente Lula na Lava Jato, que permitiu que ele voltasse a concorrer à Presidência.
Os militares apontam ainda o que consideram “inúmeras e flagrantes inconstitucionalidades e ilegalidades” que haviam sido “perpetradas por membros do sistema judiciário” e uma alegada “usurpação de poderes pelo poder judiciário ao interferir em prerrogativas do Executivo e Legislativo”.
O texto critica o que chamou de “lobby do STF” junto ao Congresso “para não aprovação da urna eletrônica com impressão do voto”, uma das bandeiras do Bolsonarismo, e o que definiu como “escalada crescente das restrições impostas pelo poder judiciário aos direitos individuais de liberdade de expressão, pensamento e opinião, com a censura imposta a órgãos de comunicação e imprensa, jornalistas, políticos, blogueiros e cidadãos comuns”, outra reclamação recorrente de membros da direita radical.
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Também sobram críticas a deputados e senadores, acusados pelos militares de “submissão por conivência, pusilanimidade, omissão e incompetência” frente ao que eles classificam como “arroubos autoritários do poder Judiciário.”
Na carta, os militares defendem ainda a tese de que o país vivia um “impasse” e que já estava estabelecido “um quadro de ruptura institucional”, visão que – segundo eles – era corroborada por “especialistas políticos e juristas.”
O documento defende ainda um “esforço conjunto” para restabelecimento da lei e da ordem. E que, se isso não fosse possível, restaria ao poder Executivo, controlado por Bolsonaro, “o pronto restabelecimento do estado democrático de direito, das instituições e da lei e da ordem” para pacificar o país.
A carta defende ainda que a solução para o impasse criado com a derrota de Bolsonaro passava, obrigatoriamente, pela “auditoria das urnas eletrônicas”, já que, na visão dos militares golpistas, o resultado da eleição de 2022 estava sob suspeita e essa “incerteza” poderia levar o país a “um indesejável quadro de convulsão social.”
Próximos passos jurídicos do inquérito do golpe de Estado
g1
Versão B
Na versão “B” da carta, que tem data de 1º de dezembro de 2022, os militares dizem que “não existe instituição democrática ou poder constituído que possa se colocar acima da lei e da ordem”, possivelmente se referindo à atuação do Judiciário.
“Frisamos e manifestamos a indignação com as flagrantes inconstitucionalidades, ilegalidades, desarmonia entre os poderes, falência do estado democrático de direito, censura prévia e privação das liberdades individuais que têm provocado insegurança jurídica e instabilidade política e social no país”, diz um trecho da carta.
“Nesse sentido, solicitamos a quem de direito, que exerça seu papel constitucional, sabedor que a verdadeira autoridade limita aos outros, mas, contudo, também limita a si mesmo para não cair no mais infame defeito de uma autoridade, qual seja, o autoritarismo”, continua.
Os militares completam que não vislumbram “a possibilidade de lutar contra o próprio povo”. E que, na verdade, permaneceriam sempre ao lado daquele que consideravam “o povo brasileiro de bem”. Em outro trecho, a carta convida “os cidadãos de bem e as famílias brasileiras a incorporarem ao nosso grupo”.
Fonte: G1