O caminho para a roça de dona Tacira Julião Alves, de 77 anos, é como uma trilha para uma época distante. Quanto mais curvas se faz nos morros da Ilha da Marambaia, pisando no barro e nas pedras, que ora são degraus, ora, obstáculos, mais a paisagem parece ter parado no tempo. Os sons de pássaros, o barulho distante do mar e o zumbido dos insetos poderiam ser interrompidos sem surpresa pelos gritos de um capataz que, ali, perseguia escravos há mais de um século, ou pelo canto do jongo com que hoje a comunidade quilombola celebra: “descansa, negro. O cativeiro acabou”.
Roça, nas palavras dos “antigos” da ilha, significa a plantação de subsistência, no meio da mata, de onde sai comida para acompanhar o peixe que os pescadores trazem da Baía de Sepetiba. Mas o que era apenas subsistência, para dona Tacira virou complementação da renda e uma posição de referência na comunidade.
Viúva e sem filhos, ela vive da aposentadoria e do que vende de sua “roça”, que tem banana, aipim, coentro, couve e outras raízes, frutas e hortaliças, incluindo o disputado “pé de calmante”, o maracujazeiro. Entre bananeiras e ramas de aipim, a remanescente quilombola dá passos firmes na trilha. As mãos só saem de trás do corpo para apontar as frutas e ervas que ainda estão no pé, mas já têm dono. “Essa é de Santana. Essa banana é do João Paulo. E aí ele pode vir aqui tirar. Se eu dei ordem, ele pode”.
No caminho de sua roça, Tacira ouve os pedidos e conta o que está verde e o que está madurando no pé. Quem quiser comprar, precisa segui-la pela trilha e conhecer o produto ainda pendurado na árvore ou preso ao chão. “Não dá briga porque não sou de briga. Quem chegar e quiser o do outro, tem que chegar antes. Chegou na hora e tem, leva.”
A terra não precisa de adubo, basta enterrar as mudas ou as sementes e ir todo dia olhar, rotina que Tacira cumpre religiosamente não só para o sustento financeiro, mas também espiritual. “Todo dia eu venho. Se eu não vier aqui, eu fico doente. É como um serviço. Você não vai todo dia? Se não for, não sente falta de alguma coisa? Chego aqui e dou bom dia para as plantações, bom dia para os passarinhos e bom dia para a natureza. Isso minha mãe aprendeu com a mãe dela”, diz Tacira que, durante a visita da equipe de reportagem, tenta ensinar a tirar o aipim da terra “sacode! sacode pra soltar a raiz!”
Na outra ponta da comunidade quilombola Sebastião dos Santos, de 73 anos, tem seu sustento reforçado pelos insetos que lhe renderam o apelido de Tião da Abelha. Apicultor, ele cria abelhas em meio à mata, a poucos metros das ruínas da senzala que recebe a festa do Dia da Consciência Negra anualmente. “Aqui sempre teve abelha. Antes, eram tudo africanas, daquelas bravas mesmo. Aí, comecei a misturar com as italianas e deu para criar.”
Se as colmeias cresceram, ele lamenta que a comunidade tenha diminuído. “A Marambaia não era esses dois gatos pingados que você vê hoje. Você passava nessa praia, e o que via era fora de série. Muita gente. O que aconteceu é que os mais velhos foram morrendo e os mais jovens não pegaram a tradição dos velhos porque eles eram roceiros, trabalhavam na roça, na pesca, e a pesca tá ficando a zero”, diz Tião. “Os jovens começam a estudar aqui, daqui vão para Itacuruçá [em Mangaratiba], e de lá vai ficando por lá. E vamos ficando só nós aqui mesmo. Os jovens vão embora.”
Como a maior parte dos homens da ilha, Tião também trabalhou na pescaria e conta que já atravessou a Baía de Sepetiba a remo muitas vezes para vender tainhas em Itacuruçá. “Todo dia era viagem para Itacuruçá de canoa. A gente ia até para Angra dos Reis. Ia quatro em um barco”, diz o pescador, sorrindo.
Enigmático, ele ri de quem diz conhecer a Ilha de Marambaia, cheia de lendas de passagens secretas e esconderijos em que os escravos ajudavam os fugitivos a se esconder. “Marambaia? Todo mundo fala ‘eu conheço a Marambaia’. Engano de todo mundo. Ninguém conhece a Marambaia. Conheço muito da Marambaia porque trabalhei muito na mata. Mas se você entra aqui, mas não sai ali. Se você entra ali, mas não entra cá”, diz ele, que não responde se a ilha tem mesmo esses segredos: “Isso eu não te digo, isso eu guardo comigo, como meu avô guardava com ele.”
Agência Brasil