Golpe ou atalho para chegar ao poder é utilizar dinheiro do crime ou da irresponsabilidade fiscal para ganhar votos, disse o senador Aécio Neves (PSDB-MG) nesta quinta-feira 17. Era uma reação à fala de Dilma Rousseff que, na véspera, acusou a oposição de usar a crise política para chegar ao poder. “É a versão moderna do golpe”, disse ela.
Há 24 horas essa “versão moderna” é alvo de um intenso debate semântico. O esforço para ejetar a petista da Presidência, chamado por ela de “golpe”, está previsto na Constituição, argumentam os opositores. Em 1964, o nome era “revolução”.
Hoje não é preciso pegar em armas para render o governante. Basta costurar acordos com quem tem a prerrogativa de afastá-lo do cargo. A estrada para o impeachment passa pelo Congresso. Lá, muitos hoje estão inclinados a mandar a presidenta para casa mas, diferentemente do que supõe o eleitor mais ingênuo, a decisão nada tem a ver com os cambalachos fiscais ou com as suspeitas na Operação Lava Jato. A bronca é por dinheiro e por cargos – e um governo fragilizado é uma porta arreganhada para barganhar cadeiras. O nome disso é “achaque”, e quem ousou pronunciá-lo precisou pegar o boné.
Quando o dinheiro seca, o cinto aperta, e não foi por outro motivo que o vice-presidente, Michel Temer, abandonou a articulação política. Sobrava-lhe lábia, faltava-lhe bala. A costura dos acordos era barrada quando chegava ao Planalto em tempos de esforço fiscal. Isso explica parte da má vontade de deputados e senadores em aprovar as medidas hoje consideradas vitais para a sobrevivência do governo, mas não só.
Parte quer sangrar o governo com a votação das chamadas pautas-bomba, que, entre outras propostas, aumentam os salários da cúpula dos servidores em Brasília. É o golpe no chão para levar o adversário a pedir arrego.
Outra parte aguarda os desdobramentos das acusações para saber para onde correr.
Outra, não menos implicada em outras suspeitas, aproveita a gritaria legítima das ruas para se apresentar como a alternativa limpa de poder. E profere frases de efeito como se não operasse no mesmíssimo esquema que jura agora combater. O nome disso é oportunismo.
Aécio, por exemplo, veste a fantasia de policial, procurador e juiz para acusar a adversária de receber dinheiro ilícito da campanha, mas não recusou um centavo do dinheiro recebido pelas mesmíssimas empreiteiras do cartel que se instalou na Petrobras (seu antecessor, segundo um delator, fez bom proveito dos recursos justamente para travar qualquer apuração). O nome disso é bravata.
Quando a Standard & Poor’s retirou o grau de investimento do país, Aécio se apressou em alardear contra o “caos anunciado” e deu à presidenta a responsabilidade “exclusiva” pela crise. Ela, claro, tem responsabilidade sobre a crise. Mas sobre o rebaixamento das notas de Minas Gerais, administrado pelo seu partido de 2002 a 2014, e de São Paulo, principal reduto tucano desde 1994, Aécio não proferiu palavra alguma. Sobre a negação recorrente do colega Geraldo Alckmin sobre a crise hídrica antes das urnas, idem.
A elasticidade do discurso sobre fatos e omissões não se restringe, pelo visto, a um único partido. Nem ao período eleitoral, como demonstra o senador, que não parece disposto a mover uma palha para alterar as bases do sistema de financiamento de campanha no país.
Como vai propor algo novo com velhos manuais, não se sabe. A sorte do eleitor é que ele ainda poderá conferir, pela internet, a distância entre intenção e gesto manifestada pelo senador: ele não conseguiu emplacar, na Justiça, um pedido para a retirada de links relacionando seu nome nos sites de busca a expressões incômodas (sugestão: Aécio + Aeroporto). Anúncios oficiais e telefonemas para constranger jornalistas, pelo jeito, são do tempo em que a notícia era monopólio da edição impressa.
A sequência de bravatas do senador é acompanhada por Fernando Henrique Cardoso, como se ele sofresse um lapso de memória sobre o que passou em 1999, quando chegou a fatura da mudança de estratégia para a economia após se reeleger. Conforme lembrou Bernardo Melo Franco em sua coluna na Folha de S.Paulo, FHC já conta com a retirada do “obstáculo” Dilma para a solução da crise e o reordenamento político com um “novo” bloco de poder.
Esse bloco, relembra o colunista, não tem votos suficientes na oposição oficial (PSDB, DEM, PTB, SD, PPS e PSC) e precisará de defecções na base aliada. Estas tem outro dono: o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
O “novo” bloco é, assim, dependente de um sobrevivente de todas as crises desde Collor. Não se sabe se ele sobreviverá à suspeita de achacar e receber US$ 5 milhões em propina de uma empreiteira investigada na Lava Jato, mas isto não parece comover os neomilitantes do jogo limpo.
Enquanto governo e oposição se estapeiam pelo nome da coisa, e trocam a palavra “golpe” de colo conforme a ocasião, o eleitor pode dormir preocupado: essa nova força política, esperada tal qual o Rei Sebastião ao fim das Cruzadas, pode ser tudo. “Nova” ela não é. Quem a conhece que a compre. Em 2014, Minas, por exemplo, não comprou.