A Constituição Federal Brasileira promulgada em 1988 previu em seu art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos à propriedade das terras que ocupavam historicamente há longos tempos, competindo ao poder público a demarcação dessas áreas e a expedição do respectivo título. Entretanto surgiram alguns problemas de ordem prática quanto à identificação dessas comunidades, principalmente devido à ausência de lei complementar que trate sobre esse assunto, por isso o Poder Executivo tem expedido decretos regulamentando essa matéria, a exemplo do Decreto nº 4.8871, de 20 de novembro de 2003, que aponta os seguintes critérios para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, de acordo com seu art. 2º: 1) a auto atribuição; 2) a trajetória histórica própria no contexto do coletivismo; 3) territorialidade; 4) a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
O conceito sobre “quilombo” ainda hoje não é pacífico, sendo que existem duas principais correntes conceituais a respeito desse tema: a primeira propõe uma leitura clássica do termo, vinculando o mesmo a toda habitação de negros fugitivos localizada em área despovoada; enquanto que a segunda propõe uma evolução interpretativa, não condicionando a ideia de fuga como único meio de formação dessas comunidades (como é o caso das comunidades quilombolas de Arapiraca), uma vez que a história brasileira mostra, por exemplo, que houve alguns períodos em que, diante de crises econômicas que atingiram os preços de produtos como o algodão e a cana-de-açúcar, fazendas e engenhos foram abandonados e, consequentemente, doados pelos grandes proprietários aos escravos. Outras terras não foram devidamente doadas, mas, por diversos motivos, foram ocupadas por indivíduos antes escravizados.
Quando uma comunidade recebe o Certificado de Quilombola, esse reconhecimento permite a inclusão das respectivas famílias nas políticas públicas específicas para estes povos, tais como o direito de participarem de programas como o Minha Casa Minha Vida Rural, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Bolsa Permanência, que fornece ajuda financeira a estudantes matriculados em instituições federais de ensino superior. Não se esquecendo que essas famílias podem também solicitar ao INCRA a titularidade das terras em que estão localizadas, caso ainda não tenham. (educação.mg.gov.br, 2024)
Segundo a Fundação Cultural Palmares, existem 3.447 comunidades quilombolas distribuídas em todas as regiões do Brasil, sendo que no estado de Alagoas há 69 dessas comunidades e na cidade de Arapiraca há duas: Povoado Carrasco e Vila Pau D’árco.
Em Arapiraca, ainda são muito tímidas as pesquisas históricas sobre essa formação quilombola que se remete aos tempos, muito anteriores à chegada de Manoel André, em que toda essa região era chamada de “Terras do Cangandú”. Por isso é urgente e imprescindível investigar, conhecer e valorizar as histórias e as lutas desses povos cujos ancestrais foram tirados à força de suas terras e trazidos nos porões dos navios negreiros para serem aqui vendidos como mercadorias, isso com o escopo de suprir a demanda por uma mão-de-obra barata que a colônia precisava. Nesse sentido, o reconhecimento das Comunidades do Carrasco e do Pau D’arco como Remanescentes dos Quilombolas, conforme reza a Constituição Federal de 1988, é apenas o primeiro passo para que o município de Arapiraca faça um resgate de sua verdadeira origem e identidade.
De acordo com o IBGE, em Arapiraca 2.128 pessoas se autodeclararam quilombolas. A identificação como quilombola foi baseada na autodeclaração, independente de qual tenha sido a resposta no quesito de cor ou raça. Foi considerada quilombola toda pessoa que, morando em qualquer um dos tipos de território quilombola, se identifique como tal.
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Mais de 98% dos quilombolas de AL vive fora dos territórios oficiais, segundo dados do Censo 2022. Trata-se do maior percentual do país, seguido por MG (96,62%) e BA (94,77%). Contudo, a tendência é nacional, tendo em vista a baixa delimitação e identificação desses territórios em todo país. A média brasileira conta com 87,41% da população quilombola vivendo fora dos territórios oficialmente delimitados, o que corresponde a mais de 1 milhão de pessoas. (tribunaarapiraca.com.br/noticia)
A Comunidade Quilombola do Carrasco está localizada a cerca de 13 km de distância do Centro de Arapiraca. Seu nome teve origem de um arbusto espinhoso e de folhas finas também conhecido como pau-viola, bastante comum na região em tempos remotos. O povoado recebeu o Certificado Quilombola no dia 13 de março de 2007.
Pau Viola, também conhecido em Alagoas como Carrasco ou Pau Carrasco.
Fonte: https://www.facebook.com/viveirobioflora/posts/2669827889781749/
De acordo com a gerência da Unidade Básica de Saúde da comunidade, no Povoado Carrasco moram quase 300 famílias e mais de 1000 habitantes, sendo que a maioria se identifica como quilombola. A população local acumula tradições cristãs e cultos afrodescendentes, tendo como padroeira local Santa Luzia. Segundo relato de seus moradores, a Festa de sua padroeira é comemorada, conforme contavam seus ancestrais, há mais de 200 anos. O esporte também é bastante valorizado, sendo que seus dois times de futebol, o Santa Luzia e o Santo Antônio, são as atrações dos finais de semana.
Poucos moradores do Carrasco têm emprego ou trabalham fora, portanto a agricultura é sua principal atividade produtiva, destacando-se o cultivo da mandioca, do feijão, do milho e de algumas frutas. A castanha do caju também é bastante aproveitada na região. Toda essa produção, na maior parte das vezes, é destinada somente para a subsistência da comunidade e pouco se vende para fora. Desta forma, o que principalmente gera renda para a comunidade são as aposentadorias dos idosos e o benefício do bolsa família, sendo essas receitas o que torna possível a aquisição de artigos que não são produzidos na comunidade.
Em consequência da falta de registros históricos, o surgimento do Sítio Carrasco ainda deixa muitas incertezas, porém sua origem foi contada de forma oral pelos ancestrais de seus moradores que relataram que tudo surgiu a partir de uma fazenda criada na região no início do séc. XIX, uns falavam em 1802 e outros em 1808. Caso realmente seja datada de 1808, é grande a possibilidade de que seus primeiros proprietários teriam sido portugueses que chegaram com a Comitiva Real de Dom João VI fugindo da invasão de Napoleão Bonaparte, Imperador Francês, a Portugal.
A história local relata que a fazenda tinha um casal como proprietário, o qual possuía alguns escravos de origem angolana. O nome do proprietário e as circunstâncias de sua morte terminaram se perdendo na memória da comunidade, no entanto o nome de sua esposa Antônia Rosa foi imortalizado no consciente coletivo, inclusive seus moradores costumam chamá-la de Capitã Antônia Rosa, pois, ao ficar viúva e sem herdeiros, a mesma tomou decisões incomuns e surpreendentes que a tornaram numa grande heroína e fundadora do Sítio Carrasco.
Não tendo filhos para quem deixar a propriedade de suas terras e ao desenvolver uma relação verdadeira de afeto e de respeito humano para com os escravizados, Antônia Rosa, antes de morrer, numa atitude bastante altruísta e digna de exaltação, decidiu por alforriar os mesmos e dividiu a propriedade entre eles. A partir de então, o que antes era uma fazenda, foi se transformando aos poucos no Sítio Carrasco, uma comunidade cuja população é predominantemente de origem africana e que cresceu em decorrência de matrimônios quase todos dentro de um mesmo círculo familiar, porém há relatos de que eles também interagiram com outras comunidades quilombolas ao longo dos tempos.
Conforme matéria do Portal Sete Segundos datada de 2014, Margarida Maria, uma das representantes da Comunidade do Carrasco, narrou que seus ancestrais contavam que Antônia Rosa, após perder seu esposo, foi procurada por pessoas que vieram de longe no intuito de comprar seus escravos, entretanto a citada capitã não aceitou vendê-los e antes de morrer ainda os deixou livres e como verdadeiros proprietários das terras.
Seus moradores relatam também que, na época da fundadora, a região era cercada de matas e havia algumas casas de taipa. Com a morte do esposo, Antônia Rosa, como uma verdadeira capitã, assumiu o comando e a administração das terras tornando-se a maior autoridade local, de forma que alguém somente adentrava em suas terras se tivesse sua permissão. Relatam também que Antônia Rosa tinha duas mucamas, uma chamada Pastora e a outra Belinda, ambas vindas de Angola, sendo que esta última teve uma filha que se casou e teve 18 filhos, dando início assim ao povoamento local.
No princípio as condições de vida não eram boas, mesmo sendo proprietários das terras e das casas de taipas, nessa época, os homens praticavam a agricultura de subsistência, enquanto que as mulheres e as crianças fabricavam panelas e potes de barro para venderem na feira livre de Arapiraca e, como não havia outros meios de transporte, as mercadorias eram levadas em burros ou na cabeça por distâncias de até 15 km em trilhas no meio do mato, o que tornava a jornada árdua e cansativa.
Com o tempo as coisas mudaram, hoje a comunidade dispõe de Escola, de Unidade Básica de Saúde (UBS) e de transporte público, além da Associação de Moradores que surgiu a partir do reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares como uma comunidade remanescente dos quilombos. Por meio da associação, a comunidade tem oficinas de modelagem, reciclagem, pintura, artesanato, entre outras.
Devido à beleza natural da região que é cercada por serras, bem como devido à proximidade ao centro de Arapiraca, têm surgido muitas chácaras no Povoado Carrasco, tendo como proprietários tanto seus antigos moradores como pessoas de fora, o que tem mudado bastante sua paisagem.
*Abelardo Silva Nunes é Bacharel em Direito, Escrivão de Polícia Civil, Pós-graduando em História, Pesquisador Historiográfico e lançará um livro sobre a História de Arapiraca neste ano do Centenário de Emancipação Política.