Privação de sono, pauladas, tarefas em salas impregnadas de gás lacrimogêneo e pimenta, almoço misturado com água e consumido com as mãos imundas de terra e pus, humilhação e assédio moral praticados por superiores.
As cenas, registradas em um curso recente de formação policial no Brasil, se repetem pelo país. Expõem ainda o predomínio, no treinamento das PMs, de uma “pedagogia do sofrimento” que acaba por alimentar a violência de seus agentes nas ruas.
A conclusão é do capitão da PM da Paraíba Fábio França, que colheu relatos de participantes de um estágio de aperfeiçoamento realizado em agosto de 2014 em uma Polícia Militar do país – o Estado não é revelado na pesquisa porque os chefes da corporação pediram para “resguardar a imagem da instituição”.
Mestre e doutor em sociologia, França especializou-se no estudo da formação dos profissionais de segurança pública no Brasil.
Com 35 anos de idade e 13 de PM, o capitão cunhou a expressão “pedagogia do sofrimento” para caracterizar o modelo de cunho militarista que, segundo ele, predomina na educação policial no país, baseado em valores como masculinidade, virilidade e exaltação ao combate bélico.
Para ele, essa pedagogia está ligada a um “ethos (conjunto de costumes e hábitos) guerreiro”, que legitima a “construção de uma vontade bélica de proteger a sociedade”.
“A crença geral é que o treinamento baseado em violência psicológica, moral e até física é necessário para condicionar o corpo e a mente dos soldados para vencer o medo e o perigo, e ter coragem para o embate no que seria uma guerra urbana”, afirma França, que relaciona o fenômeno ao que aponta como “herança ditatorial” das PMs brasileiras.
‘Se não aguentar, corra’
Em conjunto com a colega de PM Janaína Gomes, o capitão reuniu depoimentos de participantes de um curso de formação de um pelotão especial de patrulhamento em motos.
Para os autores, que publicaram os resultados do estudo na última edição da revista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os rituais do treinamento reforçam a “pedagogia do sofrimento” em detrimento de valores como comunicação, solução de problemas e relação com a comunidade.
“Na obtenção de um ‘brevê de virilidade militar’, é necessário um aprendizado voltado para o sofrimento físico e para as dores morais”, escrevem os policiais e especialistas em segurança.
Nesse contexto, aponta França, mulheres que apostam na carreira policial acabam obrigadas a “introjetar o papel dominador da maioria masculina” para conseguir espaço em um “universo marcado pelo preconceito” de gênero e contra homossexuais.
Uma aluna do curso, por exemplo, relatou como os participantes eram molhados com água gelada durante a madrugada, entre outras privações.
“Além de banho de água gelada na madrugada teve também gás. Eles colocaram a gente dentro de uma sala, mandaram a gente tirar a camisa, colocar a camisa no olho, gasaram (lançaram gás lacrimogêneo ou de pimenta) a sala e desmontaram a pistola para a gente montar, e só saía da sala quem conseguisse montar a pistola”, afirmou a militar aos pesquisadores.
Outro participante reclamou de uma situação em que a saúde dos alunos foi, segundo ele, colocada em risco.
“No horário de almoço da gente, pegaram as quentinhas e jogaram dentro de um isopor sujo. Aí botou (sic) a gente pra comer com a mão, a mão suja do dia todinho pegando na moto, pagando flexão, com a mão suja cheia de pus, tinha muita gente com a mão inflamada. A gente parecia um bando de animais”, disse.
BBC Brasil